segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Ulisses

Ulisses

O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo –
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.

Este que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.

Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade,
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.


Fernando Pessoa


Localização do poema

O poema “Ulisses” encontra-se na primeira parte, “Brasão”, da “Mensagem” de Fernando Pessoa e integra-se no segundo capítulo: “Os Castelos”. O facto de ser o primeiro poema dessa parte, justifica-se por Ulisses ser o mais antigo dos heróis associado à história de Poertugal. De facto, nesta capítulo, como acontece noutros, o autor segue uma organização cronológica dos heróis.
O título “Ulisses” remete-nos para a origem de Portugal, atribuindo a Ulisses, navegador errante, que depois da guerra de Tróia se perdeu, a fundação de “Olissipo”, futura Lisboa. Não havendo provas históricas dessa fundação, na sua origem está, portanto, um mito.
O povo português nasceu de figuras lendárias (uma delas Ulisses) por isso ficamos predestinados a continuar ou seguir os feitos grandiosos dos nossos antepassados, mantendo Portugal sempre no seu auge. Hoje em dia Portugal encontra-se em decadência. Para chegarmos ao quinto Império devemos seguir, acreditar e imitar os feitos dos nossos antepassados, não através da força, mas sim através da cultura, do conhecimento, como previu Fernando Pessoa. Para este autor os Descobrimentos, apesar da sua grandiosidade, foram apenas uma pequena amostra do que os Portugueses são capazes fazer e daquilo que Portugal será: afirmar-se-á mundialmente através da cultura.


Análise do poema

O poema “Ulisses” pode se dividir em três momentos distintos, em que a primeira parte corresponde à primeira estrofe.
Nesta primeira estrofe diz-se o que é o mito, define-se o mito. Entende-se por mito – a narrativa oral ou escrita, com personagens ou feitos fantasiosos, que tem por base um facto real.
“O mito é o nada que é tudo”, neste oxímoro o sujeito poético define o mito como sendo nada, já que um mito é uma explicação fantasiosa do real, algo sem consistência, sem fundamento, mas apesar disso é tudo, porque explica esse mesmo real, com isso acaba por se tornar, também ele (mito) real e concreto. O mito cria assim as condições necessárias para que se passe a dar concretização a uma ideia.
“o mesmo sol que abre os céus”/”é um mito brilhante e mudo”, estes dois versos constituem uma metáfora. Tomando aqui o sol como um mito brilhante que abre os céus todos os dias, mostrando o seu dinamismo e mudo, podemos dizer que o mito não existe até que seja concretizado.
“o corpo morto de Deus”/“vivo e desnudo”, Pessoa considera na obra Deus como um símbolo, dizendo que o mito é como Deus que, parecendo morto se revela aos homens como vivo, sendo este último verso uma personificação, em que se atribui ao mito características humanas: “vivo” e “desnudo”.
Nesta estrofe podemos concluir que o mito é difícil de definir comprovando isso nos oxímoros: “vivo”/”morto”, “mudo”/”brilhante”. A presença do presente do indicativo justifica-se pelo facto de nesta estrofe se definir o mito como algo permanente.

Na segunda parte, que corresponde à segunda estrofe, o assunto é particularizado ao caso concreto de Ulisses, designado no poema como “este”. “Este que aqui aportou”, segundo a lenda de Ulisses, após a guerra de Tróia, no caminho de volta para Ítaca (região de que era Rei), perdeu-se no mar Mediterrâneo e, durante a viagem, aportou na foz do Tejo e fundou a Olissipo, futura Lisboa.
“Foi por não ser existindo” – o mito existe sem existir, isto é, o mito é uma crença, uma história em que as pessoas acreditam e vivem essa crença, mas o mito por si só, não passa de uma história algo não material, algo que não aconteceu na realidade.
“Sem existir nos bastou”, porque o mito basta, enquanto mito, para criar algo mais do que o próprio mito.
“Por não ter vindo foi vindo”/”e nos criou” – Ulisses mesmo que não tenha existido, já foi elevado à condição de mito e foi através dele que se explicou a origem de Lisboa. Ulisses poderá assim representar a vocação marítima dos portugueses, pois é do mar que ele chega, este mítico antepassado dos portugueses.
Os oxímoros presentes em “foi por não ser…existindo”, “sem existir nos bastou” e “ por não ter vindo foi vindo” exprimem o carácter contraditório do mito (existe não existindo). O uso do pretérito perfeito nesta estrofe justifica-se pelo recuo a uma narração do nosso passado (história da Lisboa fundada por Ulisses).

Na terceira estrofe e última parte evidencia-se a importância do mito para a vida.
O sujeito poético eleva o mito a um estatuto criador e divino, “assim a lenda escorre”, “a entrar na realidade” e “e a fecundá-la decorre”.
O mito “fecunda” a realidade, onde são as suas possibilidades criadoras que dão sentido ao real. Assim o que verdadeiramente importa não é o facto de Ulisses ter uma existência real, mas aquilo que ele representa – o futuro de Portugal glorioso só poderá ser concretizado através da vivência do mito e da energia criadora que ele liberta.
Os dois últimos versos, “em baixo, a vida, metade” e “de nada, morre”, significam que sem mito não há vida. “Vida” (“a realidade”) que se situa “em baixo” nota-se a expressão adverbial, só tem sentido quando dentro dela “escorre” (movimento de cima para baixo) “a lenda”, é a passagem do nada ao tudo.
As formais verbais “escorre” e “decorre” contêm o valor semântico de duração, traduzem assim a acção duradoura e persistente do mito. O regresso ao presente do indicativo remete-nos à conclusão de que a lenda é essencial aos feitos dos grandes povos e, por isso, persiste ao longo do tempo, mantendo-se constante.

Valor do mito e a sua importância

Ulisses distinguiu-se pelo seu valor, pela sua coragem, pela sua perseverança, pela sua audácia, pelo arrojo, pela calma que teve ao longo da sua vida. No regresso a casa, depois de Tróia, Ulisses enfrentou inúmeros desafios, enfrentou deuses, seus opositores, e conviveu com outros que o protegiam. Mas nunca perdeu a esperança de regressar um dia a casa, Ítaca, e só isso o fez vencer os obstáculos.
É a partir de uma crença, lenda que se faz história, onde esta vem inspirar o Homem, dando-lhe referências simbólicas, e se alimenta a alma humana. O mito proporciona mudanças na vida.
A vida passa mas o mito fica, isto é, o mito apesar de ser uma crença das pessoas nunca “morre”, é uma continuidade, enquanto a vida vai passando.
Conclui-se assim que, a partir deste poema, que as figuras históricas e míticas que nos vão aparecer, surgem como emblemas ou símbolos, considerados importantes para o poeta, para transmitir o seu desejo inicial: construir o Quinto Império.


Disposição gráfica

Este poema é dividido em três quintilhas (cinco versos), em que cada verso é um octossílabo (oito sílabas métricas) excepto o ultimo verso de cada quintilha em que este é disposto em tetrassílabos (quatro sílabas métricas). O último verso de cada quintilha é mais curto do que os anteriores pois o sujeito poético pretende realçar e concluir a assunto tratado em cada estrofe.
Isto verifica-se ao longo do poema, em que na primeira estrofe, estamos na presença de uma dupla adjectivação “vivo” e “desnudo” que traduz o carácter temporal da estrofe. “Vivo” é algo que permanece constante – mito, deste modo a utilização dos verbos no presente do indicativo em toda a estrofe.
Na segunda e terceira estrofe, os últimos versos, são formados por formas verbais adequadas ao tempo verbal da respectiva estrofe. “Criou” encontra-se no pretérito perfeito reforçando o assunto da estrofe do passado em que Ulisses aportou em Lisboa e a fundou, e, por sua vez, nos veio a “criar”.
Já no último verso da terceira estrofe “de nada, morre” o verbo encontra-se no presente do indicativo, pois o assunto da estrofe diz respeito à importância e existência da lenda, mito na nossa vida, e que sem esta “morremos”, a nossa vida deixa de ter sentido.
Se juntarmos os últimos versos de cada estrofe podemos tirar uma conclusão.
“O mito é vivo e desnudo, ele nos criou e sem ele nada somos, isto significa que o mito é algo constante e permanente na nossa vida, não como algo físico, mas sim espiritual, e que foi a partir deste que nos fomos criando como povo e fazendo grandes feitos. A vida precisa de mitos, pois sem eles a vida não teria qualquer sentido, muito menos a vida que é preciso criar: a existência do Quinto Império.


Progressão regressiva do final do poema

Na última estrofe, em que se faz referência do mito na vida, existe um movimento de cima para baixo, onde a lenda “escorre” e fecunda a “realidade”. Isto significa que o mito vai fazendo parte da realidade, pois a realidade também é feita a partir das lendas em que as almas humanas são inspiradas.
No final do poema há uma progressão regressiva porque partimos do ponto mais alto (a “lenda” ou mito), “escorregamos” para um patamar um pouco mais abaixo (a “realidade”) e ainda temos mais um degrau a descer: “em baixo” está a “vida”, que “morre”…


Aproximação do poema pessoano ao poema camoniano


Nos poemas d`”Os Lusíadas” referidos aos cantos III, estâncias 57 e 58, retrata a formação de Lisboa por Ulisses, “que edificada foste do facundo”, o que se aproxima muito com o poema pessoano, pois no poema de Fernando Pessoa, na segunda estrofe, existe um recuo com n`”Os Lusíadas” para o passado de Portugal, onde se refere à formação de Lisboa e o facto de esta ter sido fundada por um guerreiro lendário grego da antiguidade, conhecido pela sua coragem e perseverança: Ulisses.
Já no canto VIII na estância 4, Camões refere-se à chegada pela primeira vez de Ulisses a Lisboa “vês outro, que do Tejo a terra pisa”, faz ainda referência ao facto da sua história antes de fundar Lisboa, do seu “tão longo mar arado”, da sua longa e atribulada viagem na tentativa de regresso à sua terra natal, onde ficou conhecido pelos seus grandes feitos. Esta estância aproxima-se do poema pessoano “Ulisses”, pois foi através da sua viagem e chegada a Lisboa, fundando-a, que ficou relembrado como uma lenda em que os Portugueses foram “criados”.
Na estância 5, fala-se numa “Deusa que lhe dá língua facunda”, esta deusa segunda a lenda é Minerva, deusa da Sabedoria, que surgia sempre para Ulisses em situações perigosas e que necessitassem de ajuda. Nesta estrofe Camões quer referir que o Herói Ulisses não era apenas força e coragem, mas também sabedoria, conhecimento e cultura. Pessoa faz referência no poema “Ulisses” ao que significa mito e o que ele importa para a vida e para a construção de um Quinto Império, não da força bruta e física, mas da força intelectual e cultura.
As estâncias de Camões e o poema de Pessoa aproximam-se no factos destes dois poetas fazerem referência ao valor da cultura e conhecimento para o povo português e que a lenda deve ser continuada por Portugal. Pessoa previu a construção do Quinto Império, no entanto Camões apenas critica o facto de não se valorizar a cultura em Portugal.


Música relacionada com o poema

“A Portuguesa” – Hino de Portugal

Heróis do mar, nobre povo
Nação valente e imortal.
Levantai hoje de novo
No esplendor de Portugal.
Entre as brumas da memória.
Oh pátria sente-se a voz,
Dos teus egrégios avós
Que há de levar-nos à vitoria.
Às armas, às armas
Sobre a terra e sobre o mar
Às armas, às armas
Pela pátria lutar
Contra os canhões marchar, marchar!

Escolhemos esta célebre música porque fala do povo português e dos seus feitos (Descobrimentos). De uma forma indirecta podemos dizer que se faz uma pequena referência ao Quinto Império, “levantai hoje de novo o esplendor de Portugal”, faz referência aos nossos antepassados “entre as brumas da memória” e “dos teus egrégios avós”. É uma música que identifica Portugal, é como um símbolo!



Objecto relacionado com o poema

Padrão dos Descobrimentos
Escolhemos este objecto devido ao seu significado, este representa os Descobrimentos e é único na cidade de Lisboa, cidade onde Ulisses aportou e fundou Olissipo, hoje Lisboa, representa também o ponto de partida de onde os portugueses, saíram na procura de novas rotas marítimas.


Grupo I
Ana Leite; Cátia Ferreira; Joana Sousa e Sara Alves